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Trabalho com TI, sou preocupado com questões ambientais.

4/10/2011

O Chato

Se alguém começa uma conversa perguntando se tu tens um “tempinho” tem 52,5% de chance de ser um chato.  Se usar a versão trágica: “precisamos conversar!” a chance sobe para 98,984% e a introdução te dá um peso na barriga.
Mas não é isso que é mais chato no chato. 
O que é mais chato no chato, é que para ele tudo é sempre, muito, muito importante!

 A cada dez minutos pergunta se está incomodando. Tu diz que não e ele acredita!
O chato espera uma conversa ficar interessante para interromper assim: “Eu acho que ambos tem um pouco de razão”. E termina com o assunto.
Se alguém está desabafando alguma tristeza ele entra atalhando e solta outro refrão: “o sol lá fora está lindo não há motivo nenhum para você estar triste, entendeu?”.  Tudo resolvido, fim de papo e ele muda de assunto.  O chato não escuta, dá conselhos.  Suas leituras favoritas são livros de auto-ajuda e manuais de instrução de celulares. 

A cada 30 segundos diz que já está indo. E não vai.

O chato adora uma fila porque lá dá pra reclamar bastante e porque lá pedem documentos. Chato é apaixonado por documentos e tem orgasmos por assinaturas.

Se tu diz “aparece lá em casa”, ele aparece!
A não ser quando tu precisas. Se tu estás num momento mágico, nas nuvens, ele bate na porta e pergunta se está tudo correndo conforme o script. No cérebro do chato, tudo, inclusive o amor, prescinde de organização.

Se tu pede pra um chato te ajudar a achar a chave de fenda ele te pergunta onde você a deixou da última vez.

Nunca cumprimente um chato dizendo “fala, meu!”!  Ele vai entender que é pra falar mesmo!
O chato não te abraça. Ele se gruda!
Quando o chato para de falar, ou de fazer alguma coisa contigo (que é sempre muito, muito importante) invariavelmente pergunta, no final, se você gostou.  Se tu responde que não ele diz que tu não entendeu o espírito e se tu diz que sim ele quer saber de que parte!!

Quando tu estás quieto o chato pergunta o que está havendo. Se tu falar ele interrompe.

O chato adora ficar ao teu lado, te olhando na cara, sem fazer nada. E embora não sabendo o que tu estás fazendo quer saber quando tu vai terminar.
  
Desculpa aí meu.  Escrever sobre chatos é meio irritante!

Quando termina o papel higiênico, tu pedes socorro gritando alto, para ver se alguém pode te alcançar algum kit socorro.  Aí o chato não está em casa, é claro. Tu vai ter que sair de quatro e ver se tem papel toalha na cozinha.  Quando chega lá encontra o chato empacado, na frente do papel toalha, tomando o teu suco.  Não saca que precisa sair da frente e quer saber como foi que tu te descadeirou.

Preciso desabafar!

O chato fala ‘briefing’ ao invés de relatório.
 Ele não peida, ele flatula. Bota camisinha até pra se masturbar!
Na entrada do blog de um chato tem sempre uma mensagem assim: “você quer mesmo entrar na minha página?”
Não cara, foi engano, eu estava passando, aí vi esta telinha e pensei que tava dando o domingão do Faustão. Tu queres dar só uma espiadinha, mas para ele tudo é matrimônio.

O chato não usa o botão “deletar”.  Para excluir emails ele tecla em “forward”.  E marca todos como muito, muito importantes!
Isto quando não mistura um texto do Shinyashiki, com um da Marta Medeiros, bota uma musiquinha do John Lehnon e diz que foi o Veríssimo que escreveu.  Aí manda pra lista inteira e sugere que repassem prá mais trinta se não quiserem ter peritonite intestinal.

Se entrar no blog do chato vai acabar instalando alguma coisa que não devia de tanto teclar em confirma, OK, aceito, etc. A próxima vez que liga o computador vai ter um alerta de que o aplicativo instalado está vencido. Quer atualizar? Tu estás com pressa e clica sim para a mensagem sumir.  Mas entra outra: o instalador está com defeito, quer que conserte? Sim, concerta. Aproveita e concerta a memória, o disco, a tomada.  Tem certeza? Sim, demais! Aí tu te irritas e começa a clicar desesperadamente em tudo o que é cancel, mas não adianta. Até que tu pega o cabo de força com as duas mãos e puxa da tomada. Outra mensagem: acabou a luz tecle aqui para continuar. Aí tu pega o micro e joga em cima da caixa de som imaginando que é a mãe dele. Mensagem: “para quebrar, feche a tampa primeiro”.

Obrigado por me ouvir!

 Algumas pessoas aparecem na tua vida só pra dar um alô, um com licença, outras só prá um “valeu!”! Outras ficam um pouco mais.
 Por quê?
Isto eu não sei ainda. Estou aprendendo. Ainda se soubesse não escreveria. Poderia virar auto-ajuda, tu repassarias para um chato e eu acabaria recebendo meu texto de volta, assinado pelo Tiririca.
Prefiro falar de sentimentos, sejam quais forem e ouvir o sentimento dos outros. Ainda que traduzam mau humor e intolerância.  Preferível ser um Zé Buscapé bufando a um pregador de verdades.  Acho que muita gente prefere rezar porque Deus não julga, não dá conselhos, simplesmente escuta. Sabe que é de conflitos que somos feitos.


 “Valeu” por ter chegado até aqui. Valeu por não interromper! Foi muito bom estar contigo!

Clério

O Espelho Retrovisor


Estão com pressa. Falam rápido e tenho que me esforçar para entender. Estou sentado no banco de trás, pois acham que aqui é mais seguro para mim. São atenciosos comigo, todos param de falar quando inicio um assunto. Talvez porque eu falo baixo e percebam meu esforço para falar. Só voltam a seus assuntos depois de terem certeza de que eu terminei de falar e de que consegui dizer o que queria. Aí seguem o assunto que eu havia interrompido e só então percebo que poderia ter deixado para falar outra hora. A pessoa que está no meu lado, uma senhora de aparência tranquila, arruma o meu casaco e pergunta se não estou com frio. Faço-a entender que não. Ela então pergunta se não quero que botem o acento mais para frente. Com um movimento da mão que responde mais rápido que minhas palavras digo que está bom assim. Ela não espera que meu olhar chegue até ela. Antes disto ela já passa carinhosamente a mão na minha cabeça para dizer que compreendeu.
Lentamente volto a olhar para frente e depois para baixo enquanto aguardo que meu pensamento se atualize. Quando vejo que o banco da frente está a uma boa distancia dos meus pés me dou conta de que as pessoas procuram assunto para interagir comigo.
Tento identificar os prédios lá fora mas eles passam muito rápido.
A mulher de aparência suave que está a meu lado gosta de mim, sinto isto. Se ela percebe que estou tentando virar meu olhar para ela ou se faço qualquer outro movimento ela se desliga da conversa com o pessoal do banco da frente e me olha carinhosamente. Me esboça um sorriso e fica com os olhos bem atentos, quase arregalados me olhando. Não pergunta o que eu quero, porque sabe que me atrapalho quando me dão opções ou quando tenho que decidir rapidamente alguma coisa. Apenas demonstra que posso falar se quiser e que ela vai me ouvir.
Mas quem é ela? Ah sim, é a Dona Laura. Subitamente ela volta a dar atenção para alguém do banco da frente que a chama novamente. Quer ser atenciosa também com eles. Enquanto faz isso apóia sua mão direita em minha perna, demonstrando que continua atenta a mim e que eu não esqueça o que queria dizer.
Ah, lembrei! Dona Laura é a pessoa encarregada de me cuidar.
Procuro foco nas coisas próximas, nas partes internas do carro. Elas tem um sentido definido para mim. Uma respiração mais longa me facilita olhar mais para o alto, mais para longe até parar no espelho retrovisor que me retem. Talvez porque as imagens além do vidro estão desfocadas pela luminosidade embora o dia não pareça ser de sol intenso. O objeto me transmite uma imagem definida e me aquieta. Tenho a sensação de que a visão me completa e me dispensa de entender o que as pessoas falam. É mais assimilável que as imagens rápidas que vão ficando para trás.
De alguma forma me tranquiliza, talvez porque não me requer pressa para compreender. Agora sou eu que deixo distantes as pessoas que estão dentro do carro. A pessoa que dirige está tranquila embora não muito animada. Mas é extremamente comedida com a pessoa ao seu lado e que está angustiada. Ajusta o espelho a todo o momento para ver como estou. Mexe no nivel da ventilação e me foca novamente no espelho para ver se pareço confortável.
Dona Laura é muito hábil nas ponderações quanto às posições um tanto divergentes dos que estão no banco da frente no sentido de perceberem os diversos aspectos de certo acontecimento que ocorreu nos últimos dias e que surpreendeu a todos eles. É sobre isto que estão falando. Dona Laura toma o cuidado de não culpar a ninguém pelos fatos ocorridos e parece colher satisfação para si mesma procedendo desta maneira. Todos parecem concordar, todavia, que precisam ser cautelosos quanto aos fatos, evitando pre-julgamentos.
Busco me inteirar melhor do assunto, mas logo desisto. Volto a olhar o espelho. Parece que esqueci algo nele e ele parece me chamar de volta.
Dona Laura se curva um pouco para frente para falar com a pessoa que está dirigindo.
- Disseram para dobrar à direita logo depois do antigo Bourbon da Ipiranga.
Vou tentando acompanhar, imagino que a rua que vão dobrar é a Barão do Amazonas. Não, a Barão só desce, não pode ser. Mas isto foi em outros tempos, me dou conta. Talvez agora se possa subir a rua Barão do Amazonas. Aos poucos a conversa à minha volta vai novamente perdendo o foco, vai se dissipando. O espelho me busca novamente. A pessoa que dirige parece saber perfeitamente disso. Volta e meia ajusta a posição do espelho e vejo nele seus olhos nítidos me focando como se estivesse compreendendo tudo o que se passa comigo. Subitamente retorna sua atenção a uma chamada aflita da pessoa que viaja a seu lado, fazendo rápidos movimentos com sua mão direita em suas pernas tentando acalmá-la. Mas não pareceu se preocupar com o fato de ter tirado sua atenção de mim. Parece saber que tem todo o tempo do mundo para retornar a me olhar.
Busco olhar o que está longe, pareçe melhor para mim. Lembro que quando se olha a paisagem distante na janela de um trem, o que está distante não se move tanto na nossa percepção. A medida que vou me focando no distante vou ficando mais tranquilo. Ficamos iguais uns aos outros quando nos focamos no distante, até chegar nas estrelas. Estão tão distantes que o espaço que nos separa uns dos outros parece insignificante. E as estrelas estão lá da mesma forma que sempre estiveram. Se apresentam para nós imutáveis e nos dizem a mesma coisa que nos diziam quando eramos crianças. Como alguma coisa que está lá naquele espelho a muito tempo e do qual não preciso ter pressa para compreender. Assim as coisas à minha volta vão se dissipando e eu começo a me entregar de novo ao objeto...
...para quieto!
Olho no retrovisor para ver com quem ele está falando.
-Falando com quem filhote?
Ele está irritado, não me responde.
Levanto o vidro, está quente, vou ver se o concerto no ar condicionado ficou bom. Que será que o Lucca quer dizer com "para quieto"? Falou isto ou foi impressão minha?
A Ipiranga está congestionada de novo! Quero chegar em casa logo. Porto Alegre está mesmo precisando de um metrô. Será que vai passar o o jogo do Grêmio pela TV?
Quanto será que está custando o pay per view? Poderia convidar o Jaime e fazer uma comida lá em casa hoje à noite. Mas aí teria que parar aqui no Bourbon e comprar algumas coisas. Precisava ver com ele se aquele negócio vai sair ou não. Saudade de conversar com ele. E eu aqui nesta tranqueira.
Quando parece que no rádio vão se referir à hora do jogo do Gremio, Lucca reclama de algo novamente:
-Para quieto!
-Lucca, quem é que não para quieto?
Ele não responde. Bem, agora já passei do Bourbon. Convido o Jaime para um chimarrão então. Sei lá.
-Fala agora filhote, quem é que não para quieto?
Ele agora não responde, parece brabo. Murmura alguma coisa mas eu não compreendi. Tenho me prometido ficar menos agitado e conversar mais com ele. Mas o Lucca tem destas coisas, quer atenção, mas depois que a tem muda de assunto. E ele sempre começa um assunto novo quando estou começando a entender uma noticia no rádio. A proposta que costumo fazer pra ele é assim: agora eu te escuto mas quando estou tentando ouvir o rádio ou falar com alguém tu aguarda, certo?
-Certo!
Certo nada! Ele sempre diz que concorda, dá até um sorriso desleixado, mas de satisfação por ter tido atenção naquele momento. Se sente bem em participar de um trato, mas sempre parecendo muito pouco preocupado em anotar compromissos tratados.
-Ké paiá kéto?
Lembro que desisti de tudo e desliguei definitivamente o rádio. Aquele dia eu estava mais irritado que nos outros.
-Lucca, agora tu vai me dizer, quem deve parar quieto!!
Não sei se porque eu falei mais alto ele agora estava quieto enquanto eu ajustava o retrovisor pra ver se sua expressão denunciava alguma coisa. Ele tinha um olhar de que havia desistido de algo mas não estava satisfeito com isso. Olhava perdido para um ponto qualquer fora do carro. O trânsito parou de novo e levei minha mão para ajustar o retrovisor como se ainda não tivesse ajustado várias vezes. Agora mais movido pela curiosidade que começava a ficar aguçada.
Ele procurava demonstrar que não notava que estava sendo encarado. Mas fazia uns rápidos movimentos com os olhinhos, de vez em quando buscando o espelho, sempre conferindo se ainda era o alvo da atenção. Parecia estar um pouco constrangido. Acho até que gostaria de dizer que não era tanta atenção assim que queria. Parecia agora querer indagar porque desisti do rádio.
Quando o carro voltou a andar eu passei a dar umas pescadas discretas no retrovisor. Me parecia te-lo acalmado, mas mais com a minha irritação do que com minha atenção. E eu não estava me sentindo bem com isso. Deste ponto em diante ele parece até que passou a vigiar por uma brecha na minha atenção para poder cuidar sósinho de suas questões. Parecia querer voltar a um empreendimento que pretendia fosse só seu. Eu fingi que me distraí e passei a vigiar o retrovisor discretamente, sem que ele percebesse. Minha curiosidade estava agora aguçada ao máximo. Quando o carro voltava a se movimentar ele sacava que estaria um pouco mais liberado da minha vigilancia cerrada e levava sua mãosinha direita ao alcance do olhar e analisava. Fazia suaves movimentos com os dedos como que se assegurando de que eram elementos isolados um do outro. Minha curiosidade subiu ao máximo. Mantendo a mão direita à altura dos olhos, aproximou a esquerda e passou a analisar o conjunto. Como que elucidando o fato de o conjunto maior ter uma definição com possibilidades incrementadas. Mas o que teria o "ké pará queto", ou coisa assim, a ver com isso? Eu estava prestes a saber. O carro parou, ele percebeu que eu estava olhando e desfez tudo num resmungo.
Fui me lembrando que nos últimos dias, nos leva e trás para a escola, o assunto era os primeiros cálculos matemáticos dele. Lucca queria que eu formulasse as perguntas. Quanto é um mais tres, por exemplo. Enquanto ele pensava eu tinha que ficar atento e totalmente disponivel aguardando a resposta. Quando acertava, espalhava um sorriso lavado para todos os lados. Eu também ficava satisfeito com minha função cumprida e me permitia, agora sem culpas, voltar para o rádio. Pensava que podia.
-Agora pergunta outro, pai.
Eu respirava para estancar qualquer impaciência.
-Tá, quanto é dois mais dois?
-Não, este tu já perguntou. Pergunta outro.
Eu já havia esgotado todas as combinações entre os números mais baixos. Por falta de opção ou para dete-lo um pouco mais passei a incrementar um pouco os números. Mas ele não gostava de errar um tres mais quatro, por exemplo.
Aí passou a usar os dedinhos, mas fazia isto por baixo das roupas como que escondendo um misterioso truque . O movimento intenso das roupinhas, pelo movimento dos dedos, que deveriam encobrir o truque denunciavam tudo e a roubada ficava ainda mais evidente. Mas os olhinhos arregalados e a cara satisfeita era de quem vai manter o truque em segredo pelo resto da vida.
Eu comecei a desconfiar que uma história tinha a ver com a outra.
Mas porque naquele dia ele procedia diferente? Talvez porque estava mais difícil que outros dias ter minha atenção. Porque eu estava mais irritado, talvez. Porque a Ipiranga estava trancada? Talvez, talvez.
Só sei que naquele dia eu ainda não tinha ouvido nenhum "pai me pergunta quanto é quatro mais dois". Aquele dia Lucca estava brabo, frustrado com algo, e sem muita vontade de conversar. E eu estava agitado. E aquele "tu qué pará quéto" não estava explicado ainda.
Levei a mão novamente no espelho, tirando-o da posição e voltando a ajustá-lo como se isso fosse ajudar a foca-lo melhor. Percebi que havia um desentendimento dele com seus dedinhos e ele pensava num jeito de equacionar isto.
Era hora de não indagar nada e observar. Me parecia mais interessante descobrir por mim mesmo. E receei não ter a resposta dele se perguntasse. Mas os movimentos dele foram cessando, como quem desiste. Seu olhar começou a ficar meio perdido olhando para o lado de fora do carro, sem um foco preciso.
Comendo pelas bordas comecei a indagá-lo sobre o significado do para quieto mas a estas alturas já sabendo que o assunto tinha a ver com os dedos. Não poderia forçar mas tinha que descobrir agora. Sabia que se a atenção dele fosse dispersada para outra coisa, talvez não se lembrasse depois.
-Tú estavas falando com quem, filhote? O barulho do rádio te incomodava?
Como resposta às minhas investidas Lucca enrugava o rostinho e inclinava a cabeça levemente para baixo enquanto forçava olhar para a frente. Mas não dizia nada. Como quem diz que ainda vai resolver isto sósinho. E que no momento não estaria interessado na minha ajuda. Poderia voltar ao rádio, se quisesse.
Seus olhares de vez em quando davam rápidas investidas sobre seus dedinhos como quem teve uma nova estratégia. Mas logo desistia como quem está cansado. Talvez inibido com a minha observação que agora era cerrada.
Havíamos atingido a Av. Bento Gonsalves, já no bairro Agronomia. O trânsito passou a fluir.
-Aquilo que não estava parando quieto agora parou filhote, certo?
Como resposta só um grunhido.
- Lucca, não queres continuar a jogar com os dedinhos? Tu não estavas conseguindo brincar com os dedinhos?
Vi que o que eu disse fez diferença. Arregalou os olhos e estancou a atenção em mim, para ver se eu tinha mais algo a acrescentar. Aí eu vi que estava na pista certa. Mas não adivinhei, ele acabou me revelando. Se eu lembro? Sim, lembro demais!
-Pai, é que cada vez que estou quase descobrindo quanto é quatro mais tres este dedo aqui não pára quieto! Sempre escorrega bem na hora em que eu estou contando!
É que ele se esforçava para manter recolhidos os dedos que não fariam parte da soma. Mas sempre havia um que insistia em escapar, bagunçando a contagem. Ele estava pedindo ao dedinho que parasse quieto!
Talvez, aquele dia ao acordar eu tivesse desejado aprender alguma coisa. Talvez eu tivesse manifestado que tenho dúvidas sobre quase tudo e naquele preciso dia tivesse desejado ser acordado de novo várias vezes durante o dia. Talvez para me dar conta de que o horário do jogo do Grêmio seria anunciado ainda várias vezes. E que o Gremio ainda iria vencer e perder muitas vezes. Mas o Lucca iria crescer e aquela história só iria acontecer naquele dia e naquele momento. E se eu estivese atento.
...dou um pulo no banco. A pessoa que dirige agarrou com força o meu joelho. Me assusto embora ele já tenha feito isto várias vezes sempre se divertindo muito. Porque eu sempre esqueço que é ele que faz isto. Ele gosta de brincar comigo, percebo que se sente feliz por eu estar ali. Olho para Dona Laura e ela ri também, aí vejo que não corro riscos com sustos e que meu coração ainda é saudável. As pessoas ainda se divertem comigo. Embora eu só me de conta da brincadeira depois que todo mundo já parou de rir.
Sinto algo pousar no meu ombro esquerdo o que me tras de volta definitivamente dos meus pensamentos, das minhas viajens. É a mão de Laura. Esqueci de novo...ah lembrei...Dona Laura é a pessoa que cuida de mim.
Percebo que ela aguarda que eu volte meu olhar para ela. Aguarda uma resposta para um "tudo bem?" que ela não perguntou mas que fica implicito pela forma com que toca meu ombro e me busca para si.
O assunto dentro do carro agora é outro, estão descontraídos. Alguém observou que existem crianças tomando banho no arroio Dilúvio que corre entre as duas pistas da Av. Ipiranga. A pessoa que dirige comenta que quando criança era cheio de esgoto e que seu pai se deprimia com isso. Em seguida brinca e faz um sinal de lamentação para o motorista do carro ao lado que ostenta um enorme adesivo do Internacional.
Dona Laura brinca com ele:
- Tú está bobo demais! Vocês gremistas pararam de raciocinar depois que Grêmio foi campeão do mundo pela terceira vez. Não percebem que estão a nove anos anos sem ganhar o Gauchão!

Estou cansado agora e por um momento apenas me permito confundir as pessoas. Mas será que é preciso saber? Enquanto não distingo mais as pessoas resta-me encará-las como sendo iguais umas às outras. Quem sabe são partes minhas. Não sei, as vezes não lembro quem é dona Laura, mas é tão bom sentir sua mão envolvendo meu ombro como se quisesse tomá-lo para si. Parece que ela busca algo em mim para si mesma. Se confundo as pessoas umas das outras então melhor me confundir com elas também. Até porque quando vejo no retrovisor os olhos daquela pessoa que está dirigindo, tenho a sensação de que são meus olhos. Busco uma respiração mais longa e sempre que faço isto meu olhar busca algo que está um pouco mais à frente, um pouco mais acima. E lá está aquele espelho retrovisor. E lá estão aqueles dois olhos da pessoa que está dirigindo me observando novamente e com a expressão de que está entendendo tudo o que se passa comigo. Leva a mão novamente ao espelho, tirando-o da posição e voltando a ajustá-lo como se isso fosse ajuda-lo a me focar melhor.
Dona Laura se curva agora um pouco para o meu lado, me envolve com os braços enquanto fala agora num tom mais firme para com pessoa que está dirigindo:
-É a terceira vez que tu tira um fininho do carro da frente! Para de mexer neste espelho, Lucca e presta atenção na direção!!

Quando olhamos as estrelas lembramo-nos nitidamente das sensações que tínhamos quando crianças. As estrelas estão tão longe que não se movem por isto temos a eternidade para entendê-las. Porque me preocupar em entender quem é dona Laura ou quem são afinal as pessoas que escolheram estar ao nosso lado? Por uma vida inteira ou por um momento apenas? Sempre soube que um dia ficaria velho e confundiria tudo. Quando criança eu confundia as estrelas umas das outras da mesma forma que as confundo hoje. Isto não mudou. Quando anoitecer vou tentar me lembrar criança, vou confundir as estrelas. Enquanto isto vou gastando meu tempo olhando o retrovisor.