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Trabalho com TI, sou preocupado com questões ambientais.

7/21/2010

A Chave do Caminhão.


Eu me lembro que quando criança tinha um profundo respeito com meu pai quando ele andava rápido de um lado para o outro tentando achar a chave do caminhão. Minha mãe logo percebia. Era o que ele queria, embora nunca pedia ajuda para minha mãe. Apenas demonstrava que estava em apuros. Minha mãe ficava muito séria nessas horas e fazia de tudo para ajudá-lo. Ele precisava fazer algo muito importante e o sumiço da chave o estava atrasando. Algo muito mais importante que qualquer outra coisa. Indispensável à manutenção de um estado de coisas. Indispensável inclusive a nós, pequenos. Esta era a minha leitura. Da minha mãe e dos meus irmãos também. Que não viéssemos com considerações sobre assuntos menores ou qualquer outra observação naquele momento. Não antes que a chave do caminhão fosse localizada e meu pai pudesse partir e assim fazer algo muito sério. Havia uma concordância tácita entre nós, crianças e também da minha mãe de que dependíamos muito de tudo isso. O stress do meu pai era em função de algo muito sério que precisava ser feito. Não que ele quisesse. Era conseqüência da vida, algo a que os mais fortes, mais experientes, eram comprometidos. Estava fora da nossa capacidade de compreensão embora fôssemos parte e talvez até culpados disso tudo. Daí nosso respeito, nosso silencio e até, de certa forma, nosso constrangimento. Talvez não fosse constrangimento mas um sentimento de estorvo acompanhado de uma vontade enorme de ajudar. Mas os discretos sinais da minha mãe, dirigidos a nós, diziam que o melhor, no momento, era ficarmos quietos. Não era hora para nos evidenciarmos.
Depois então ela se encarregaria da nossa vontade de fazer barulho. Havia muitas tarefas a serem feitas, estas sim à nossa altura. Não atrativas quanto aquelas atribuídas a meu pai. Embora pouco soubéssemos a respeito delas. Talvez por isso mesmo nos eram atrativas. O fato é que minha mãe tentava nos atribuir coisas rotineiras cuja execução não era novidade, não demandavam riscos nem perigos. Tinham um resultado garantido e por isso não abriam novas possibilidades. Eu já tinha paixão por surpresas que só o incerto poderia proporcionar.
Minha mãe queria que organizássemos a dispensa, enchêssemos a moringa d’água. Mas minha euforia era quando eu e meus irmãos podíamos acompanhar o meu pai no caminhão. Meu pai quase sempre saia para fazer alguma coisa pela primeira vez. E isto nos fascinava.
A presença da minha mãe praticamente não nos intimidava. Se ela não conseguisse nos apaziguar nos dava um corridão e nos dispersava. Para longe da cozinha, que ela insistia em manter limpa. Seu trabalho não propiciava surpresas e tinha um resultado certo.
Mas ainda ninguém havia achado a chave do caminhão e isso tudo iria acontecer depois . Depois de resolvido o que era sério, indispensável, aguardávamos encolhidos o desfecho dos fatos. Eu percebia que minha mãe, entre uma investida e outra, passando a mão por cima de armários e estandes na esperança de tocar o tão desejado objeto, nos olhava indagativa. Parecia querer ter certeza de que não havia um sentimento de culpa revelado no olhar de algum de nós. Seria uma pista para achar a chave. Mas logo voltava a apalpar cantos ainda não visitados, preferindo depender dela somente.
Já um pouco cansada e aproveitando a terceira ou quarta investida do meu pai ao caminhão para conferir se a chave não estava na ignição, minha mãe discretamente se dirigia a nós num tom que eu diria que era ameaçador, não fosse pela preocupação que eu via estampada em seu rosto.
- "Será que alguém de vocês não.....Mas antes que ela concluísse havia três ou quatro cabecinhas balançando em sinal negativo.
Enquanto o meu pai ameaçava jogar o caminhão no rio Uruguai e se mandar para o Mato Grosso eu percebia que a minha mãe, tentando manter a calma, diria algumas palavras a ele em vós baixa e discretamente, de forma que não ouvíssemos. Parecia dizer: calma homem! As crianças podem ficar preocupadas com esta velha história de te mandares para o Mato Grosso. Tentava buscar rumo para si mesma e induzindo meu pai a voltar ao foco. Parece que ainda estou ouvindo minha mãe perguntar para meu pai: "Lembra a última vez que usaste a chave?".
Invariavelmente era a minha mãe que achava a chave. Quase sempre num lugar óbvio como no bolso da calça que ele havia acabado de trocar. Minha mãe respirava fundo nesta hora e entregava a chave para o meu pai, ambos sem dizer nada. Não precisavam. Minha mãe também não olhava para o meu pai na hora em que entregava a chave a ele. Era o seu protesto. Ela ganhava o nosso respeito nesta hora. Eu percebia que naquele preciso momento ela rendia uma pequena homenagem a si própria. Porque precisava. Sabia que teria pela frente ainda muitas situações como esta. Assim como a discrição do meu pai enquanto se dirigia para o caminhão era a sua maneira de pedir desculpas à minha mãe.
O fato de minha mãe ter achado a chave, e não meu pai, me deixava mais seguro, embora na época eu não soubesse disso. Imagino hoje que era por um motivo muito simples. Se meu pai fosse capaz de achar a chave, talvez jogasse mesmo aquele caminhão Chevrolet 59 no rio Uruguai e se mandasse para o Mato Grosso. Aí eu comecei a me dar conta de que a existencialidade é assegurada pelas nossas limitações. A desorganização do meu pai e a sua falta de capacidade de achar a chave o manteria ali, perto de nós. Não sabíamos disto naqueles tempos. Mas percebíamos que queríamos ficar juntos. Não precisávamos saber porque.
Após meu pai sair para o trabalho sério, do qual não entendíamos nada, minha mãe retornava pensativa ao seu trabalho. Lembro-me dela compenetrada, cortando a carne para o almoço. Enfim meu pai poderia desistir do que foi fazer e voltar logo.
Mas o trabalho dela não era importante segundo me parecia. Ficaríamos sem comida, só isso. E isso eu sabia. E eu só tinha medo do que não sabia.
Hoje, se pudesse, voltaria lá e perguntaria se ela também não gostaria de pegar aquela gamela de carne e jogar pela janela. Ou no rio Uruguai, encima do caminhão do meu pai. Se minha mãe falhasse no almoço eu saberia dos resultados. Resolveríamos isso subindo numa goiabeira. Mas se meu pai falhasse, eu não sabia o que poderia nos acontecer, porque eu não sabia o que ele tinha ido fazer. Mas eu tinha outros motivos para achar o trabalho da minha mãe pouco importante. Ela não parecia tão estressada. E quando as pessoas não estavam brabas era porque elas não estavam fazendo algo importante.

Meu pai partiu há uns anos. Se achou a chave, não sei. Mas se achou, levou consigo. Estou procurando a minha. Acho que é prá achar o que não conheço.